Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira)
No século XVIII, um escravo ficou conhecido por dominar a arte da cantaria, ofício de talhar pedras em formas geométricas para construções, e criar projetos para edificações, principalmente religiosas, no centro da cidade de São Paulo. Além de ter ornamentado a fachada de endereços como a antiga igreja do Mosteiro de São Bento, ele ergueu o primeiro chafariz público da capital, o da Misericórdia, instalado na atual rua Direita.
Lá, ponto de encontro de escravos que iam buscar água para seus senhores, falava-se de um tal de Tebas (*), nascido em Santos em 1721, e provavelmente de família africana (de quem, especula-se, teria aprendido as habilidades). Seu nome verdadeiro era Joaquim Pinto de Oliveira, e o chafariz ficou conhecido pelo apelido mesmo após sua morte, em 1811. A peça foi retirada após o processo de canalização de água, em 1886.
Apenas em 2018, o talentoso Tebas foi considerado oficialmente arquiteto pelo Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp). “Ele fez a parte mais visível e valorizada de edificações católicas em uma época na qual o Brasil era muito religioso”, diz Ferreira. “E não o conhecíamos. Que outros personagens não foram ocultos nos escombros da história?”
Obras como as partes frontais da igreja da Ordem Terceira do Carmo e da igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, ambas no centro, resistem até hoje, mas o nome do profissional se perdeu ao longo da história.
Em 2019 foi lançado o livro “Tebas: Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata (Abordagens)”, organizado pelo jornalista Abilio Ferreira, e que busca resgatar a história de Tebas.
Propriedade do mestre de obras, Bento de Oliveira Lima, Tebas, que valia mais que outros três escravos somados, segundo o inventário do dono, teve no currículo como reforma mais emblemática a da antiga Catedral da Sé, demolida em 1911. Lima morreu antes de o trabalho ser finalizado e sua família, endividada, precisou vender o serviçal para a Igreja. Após a restauração e incentivado pelos religiosos, o arquiteto processou a viúva de Lima e conseguiu sua alforria.
Alforriado entre 1777 e 1778, aos 57 ou 58 anos de idade, Tebas morreu no dia 11 de janeiro de 1811, vítima de gangrena, aos 90 anos, ainda trabalhando no ramo. O velório e o sepultamento foram realizados na Igreja de São Gonçalo, ainda hoje existente na Praça João Mendes.
Benedito Lima de Toledo, professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, em entrevista concedida à revista Leituras da História (2012), destacou que Joaquim Pinto de Oliveira soube captar a religiosidade da época e expressá-la de maneira muito pessoal. “Essa expressão da religiosidade”, disse Toledo, na ocasião, “é que o transformou em arquiteto e as suas obras em arte”.
VERSÕES
Há duas versões sobre a origem do apelido de Joaquim Pinto de Oliveira: uma em referência à engenhosidade do Tebas grego, que derrotou a esfinge, e outra a uma palavra do quimbundo, catalogada no dicionário Houaiss, também usada para definir alguém com grande habilidade. “É bem mais provável que o povo do século 18 conhecesse essa palavra de sua língua ancestral do que a lenda grega do Sófocles”, especula o escritor.
O fato é que a história de um “arquiteto negro” atravessou o século 19 em narrativas populares, adquirindo status de lenda urbana. O Chafariz da Misericórdia, local de encontros, namoros e conspirações políticas em uma cidade colonial ainda sem abastecimento de água, era conhecido como “Chafariz do Tebas”, o que ajudou a perpetuar a história de seu construtor.
O primeiro registro escrito sobre Tebas aparece somente em 1899 em uma cronologia da história paulistana, elaborada pelo cronista José Jacinto Ribeiro, relatando a construção da torre da Catedral da Sé e que “Thebas foi também o construtor do Chafariz da Misericórdia. É daí que vem a frase: é um Thebas; homem que faz tudo”. Em 1935, o chefe da Seção de Documentação Histórica do Departamento Municipal de Cultura, Nuto Sant’Anna, publica um artigo na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo intitulado Thebas: subsídios inéditos para a reconstituição da personalidade do célebre arquiteto paulistano do século XVIII.
“Ele é muito minucioso cientificamente e questiona as imprecisões dos cronistas anteriores, revelando informações adicionais como o nome completo de Tebas, obras erroneamente atribuídas a ele, mas, contraditoriamente, encerra o artigo problematizando se Tebas era mesmo um escravo, pois tinha nome completo, algo raro entre os escravizados da época”, explica Ferreira. “Além disso, Nuto Sant’Anna questiona se Tebas fez tudo que dizem que ele fez, mas adverte que uma lenda popular construída pela imaginação do povo é sempre mais interessante que figuras estéreis e frias propostas pela história”.
Em 1937, o mesmo cronista utiliza-se dessas lendas em torno do mito do arquiteto para escreve o romance Tebas, o escravo, que ganhou grande projeção na época. “Novamente, Tebas é uma figura idealizada: uma liderança que luta contra a escravidão e que ganha a alforria de um pároco depois de construir astutamente a torre da Sé”, analisa Ferreira.
Há uma versão que diz que, enquanto construíam a primeira catedral da Sé, em São Paulo, Tebas passava um bom tempo observando as obras. Intrigado com a curiosidade do escravo, o padre Justino, capelão do Convento do Carmo, perguntou-lhe o motivo dele estar ali. Tebas retribuiu com outra pergunta: “Cadê a torre?”
Justino disse que não havia nenhum construtor capaz de erguer tal torre. Tebas, que dominava a técnica de taipa e pilão, entendia de alvenaria e hidráulica, se dispôs a construí-la, sob duas condições: receber sua carta de alforria e que o primeiro casamento da catedral fosse o dele. E, em 1755, ficou pronta a primeira catedral da Sé, com a torre construída por Tebas.
Tebas, alforriado, adotou o nome de Joaquim Pinto de Oliveira e não parou por aí. Construiu a torre do Recolhimento de Santa Teresa e o primeiro sistema de esgotos do antigo centro de Sampa. Construiu o primeiro chafariz de pedra da cidade, com granito, numa época em que o granito era desconhecido.
O Largo da Memória, ao lado do metrô Anhangabaú, projeto criado por Daniel Pedro Miller, foi construído por ele. Quando alguém é muito bom em algo, é chamado de Pelé. Antes de Pelé, era chamado de Tebas. O sambista Geraldo Filme pesquisou sua vida e compôs o samba-enredo “Tebas, o Príncipe Negro.” Veja abaixo, a letra da música:
Tebas, negro escravo
Profissão: Alvenaria
Construiu a velha Sé
Em troca pela carta de alforria
Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino
Tornou seu sonho realidade
Daí surgiu a velha Sé
Que hoje é o marco zero da cidade
Exalto no cantar de minha gente
A sua lenda, seu passado, seu presente
Praça que nasceu do ideal
E braço escravo
É praça do povo
Velho relógio, encontro dos namorados
Me lembro ainda do bondinho de tostão
Engraxate batendo a lata de graxa
E camelô fazendo pregão
O tira-teima do sambista do passado
Bixiga, Barra Funda e Lava-Pés
O jogo da tiririca era formado
O ruim caía e o bom ficava de pé
No meu São Paulo, oi lelê, era moda
Vamos na Sé que hoje tem samba de roda
(*) Nota: Como não se tem qualquer quadro ou desenho mostrando o rosto de Tebas, os divulgadores de sua obra costumam utilizar o quadro “Preto” (ou Cabeça De Negro), 1934, de Cândido Portinari para poder representá-lo. Esta é também a imagem é a que utilizamos nesta matéria.